Nos próximos 50 anos o transporte individual arrisca desaparecer

2022
19-07-2022

Num século, passámos dos cavalos aos voos espaciais. Os especialistas preveem que o futuro transporte vai ser elétrico e na lógica da partilha de veículos entre várias pessoas. A indústria automóvel já está a adaptar-se e a investir na micromobilidade e no carsharing.

Vão ser as tecnologias, como sempre foram, a mudar a forma como nos deslocamos. Em pouco menos de um século, a evolução da Humanidade, neste
capítulo, foi tão grande que passámos de andar a cavalo aos voos espaciais. Agora, nos próximos 50 anos, serão as energias renováveis e a inteligência artificial a ditar radicalmente os novos hábitos dos seres humanos em mobilidade. No setor já há quem consiga prever que teremos uma sociedade sem carros individuais em
2072.

“Nos próximos 50 anos, a mobilidade será 100 por cento partilhada, on demand, autónoma. Será alimentada por baterias, células de combustível e hidrogénio”, afirmou Adetayo Bamiduro, presidente e fundador da startup de mobilidade nigeriana Max.ng, que liga utilizadores e motoristas de moto-táxi profissionais através de uma aplicação móvel. “Em breve ninguém precisará de veículo individual nem na América, nem em África. E sim, os bilhetes de avião para ir à Lua serão acessíveis para a classe média”, afirmou ao site Euronews.

O que agora parece uma distopia, em breve será banal, até porque os efeitos da pandemia de covid-19 e as alterações climáticas estão a empurrar-nos a todos para mudanças radicais, dos autocarros a hidrogénio ou autónomos ao novo urbanismo das “cidades dos 15 minutos” (em que todos os serviços estão à distância de 15 minutos a pé).

Indústria aposta na micromobilidade
A própria indústria automóvel já está a adaptar-se e a investir em plataformas de micromobilidade (à semelhança do que fazem a Uber ou a Bolt, entre outras). Veja- -se o exemplo da espanhola Seat, uma das mais tradicionais marcas automóveis há mais de 70 anos e que está agora a mudar-se para o mundo da mobilidade elétrica
através da sua marca Mo, como destacou o artigo da Euronews. A nova divisão de mobilidade elétrica Mo vende a trotineta elétrica Seat Mo 125 e, em mercados selecionados, duas outras e-scooters: a Seat Mo 65 e a Seat Mo 25. Uma transformação que foi comentada com humor pelo diretor da SEAT Mo, Lucas Casanovas, ao site Autonews: “Somos loucos ou quê?”. “Descobrimos que, em alguns países, o número de pessoas que tiram carta de condução baixou 40% ou 50%. Ora, se os jovens não tirarem a carta é óbvio que não comprarão um carro. Pensando nisso, questionámos: ‘As novas gerações precisam de mudar de A para B, mas, se não estão a comprar automóveis, o que estão a fazer para se deslocarem?”
Lucas Casanovas e a sua equipa na Seat assistiram ao “uso crescente de trotinetas, motas elétricas e outros serviços de mobilidade como a Uber, por exemplo”. “Então concluímos que se não fornecermos estas novas soluções de mobilidade para os mais jovens, eles irão para outras marcas que as forneçam”.

Foi depois desta epifania que a Seat resolveu apostar nos novos serviços e produtos de micromobilidade. O que a marca catalã está a oferecer também são os serviços por subscrição. “Em França, por 250 euros por mês, é possível ter, num pacote, o Seat Ibiza mais a trotineta elétrica e a nossa nova e-scooter. Percebemos que, para o fim de semana, o cliente ainda precisa do carro, mas para ir ao ginásio basta-lhe a mota elétrica e, para deixar os filhos na escola, tem a e-scooter.” Casanovas está a ler bem o futuro. Durante um século, os clássicos fabricantes de automóveis foram a principal solução de mobilidade. Mas esse padrão mudou. Outras marcas já o perceberam e estão também a fazer a sua adaptação camaleónica. A Renault tem o Mobilize, a Toyota tem o Kinto e outros fabricantes estão a fazer parcerias com marcas dedicadas às trotinetas, e-scooters e bicicletas elétricas.


O crescimento dos elétricos
Para Michiel Langezaal, presidente da startup holandesa Fastned – que gere uma rede de estações de carregamento de veículos elétricos em toda a Europa, com base na energia solar e eólica – o futuro é elétrico. “Em 2050, tudo o que funciona com base numa combustão vai deixar de existir”, afirmou, indo ao encontro do que são as metas das Nações Unidas e da Comissão Europeia para a descarbonização. Para manter o aquecimento global a não mais do que 1,5 graus celsius, como definido no Acordo de Paris, as emissões de gases poluentes e combustíveis fósseis têm de ser reduzidas até 45% em 2030 para atingir a meta “net zero” ou “zero
emissões” até 2050.

Em Portugal, a CEO da EDP Comercial, Vera Pinto Pereira, destacou, no debate do Portugal Mobi Summit, o enorme crescimento do mercado dos elétricos em pouco tempo. “Em Portugal, estamos entre os 10 países europeus com maior penetração de veículos elétricos (VE)/híbridos a nível de novos veículos vendidos. Recentemente, os elétricos ultrapassaram os híbridos nesta parcela, nestes 22%, o que é bom sinal.”
Para o presidente da startup holandesa Fastned, “a questão principal da próxima década é proporcionar a liberdade de fazer a transição para um carro elétrico”.
“Haverá baterias muito maiores, porque o carregamento está a tornar-se mais rápido, o que oferece mais liberdade às pessoas”, sublinhou Michiel Langezaal.
Em Portugal, a rede de carregamento a nível nacional, quer doméstico, quer público, já é das melhores da Europa. “Temos hoje uma rede de 4000 pontos de carregamento a nível nacional, o que dá uma cobertura muito expressiva do território, considerada boa a nível europeu, e o número de utilizadores desta rede aumentou mais de 60% nos últimos meses”, destacou a CEO da EDP Comercial.

Mas, por muito atrativa que seja a transição elétrica, não resolve
tudo. Justin Bishop, economista e ex-investigador associado de Análise de Transportes da Universidade de Cambridge, alertou que a mudança para formas de mobilidade elétrica pode não ser suficiente para lidar com as emissões de gases e outros danos ambientais. “Mudar para veículos elétricos e a hidrogénio responde apenas à questão das emissões que saem do tubo de escape e desloca o problema para o cimo da cadeia de abastecimento”, afirmou ao Euronews. “E isso pode produzir consequências indesejadas, como observámos com os biocombustíveis ao
longo dos anos. Independentemente desse aspeto, é preciso uma grande quantidade de energia e muitos outros recursos para passar dos transportes baseados nos combustíveis fósseis para transportes baseados 100% na eletricidade, no hidrogénio ou noutro combustível novo”, concluiu Bishop. Para o investigador, alcançar os objetivos de sustentabilidade implica travar a procura crescente de
energia.

Viagens ativas crescem
Com o progresso do planeamento urbano integrado e das estratégias
para usar o espaço público de forma diferente, reduzindo as distâncias, a maioria das deslocações poderão ser ativas, realizadas a pé, de bicicleta ou em transportes públicos. É por isso que o placemaking, o design urbano de cidades ao nível
dos olhos concebido em equipas como a STIPO – grupo multidisciplinar de desenvolvimento urbano sedeado em Amsterdão que tem num dos mentores Hans Karssenberg – ou os superbairros de Barcelona (sem trânsito automóvel), defendidos por Silvia Cassorán Martos, adjunta no gabinete de
urbanismo do município catalão, são os reflexos deste novo presente
e do futuro que se quer. Karssenberg e Silvia Cassorán Martos já foram entrevistados nesta edição do Portugal Mobik Summit.

A ideia é reverter o padrão e ter espaços urbanos pensados e concebidos para as pessoas usufruírem e não para os carros. “Num cenário de crise ambiental e de crise da saúde a nível global, as viagens ativas são a melhor opção, de longe”, afirmou ao Euronews Esther Anaya-Boig, investigadora de Política Ambiental e consultora de Mobilidade em Bicicletas. Essa tendência vai crescer, mas ainda há espaço para melhorias. “Oferecer apenas espaço não é suficiente, sabemos que a viagem ativa tem de ser segura e confortável, para ser inclusiva”.
Também a mobilidade experimental terrestre tem vindo a avançar, tendo por alavanca projetos futuristas como o Hyperloop, um sistema de transporte terrestre e subterrâneo de supervelocidade. Na visão dos inventores do Hyperloop, no futuro cada viajante escolhe o tipo de transporte mais adequado às suas necessidades. Trata-se de uma “experiência de viagem centrada no ser humano”, afirmou ao Euronews Bibop Gresta, presidente e fundador da empresa Hyperloop Itália.
No futuro, as pessoas vão viajar numa rede de cápsulas de alta velocidade, em tubos de baixa pressão, articulados por cima e por baixo da superfície da Terra. “São máquinas avançadas com base na inteligência artificial, capazes de
servir o maior número de pessoas na mesma rota no menor tempo
possível para minimizar o impacto energético”, afirmou Bibop Gresta.
“O conceito de propriedade de automóveis deverá desaparecer gradualmente”.
Voar de um lado para o outro poderá vir a ser tão normal, como vimos nos filmes de ficção científica que marcaram gerações. Christine Wang, diretora da Lufthansa Innovation Hub, sustenta que as pessoas vão habituar-se à ideia dos voos autónomos, sem condutor. “Provavelmente, daqui a 50 anos, vamos saber como fazer táxis aéreos e outras tecnologias, como células de combustível de hidrogénio, mais baratas e acessíveis”, afirmou a executiva do laboratório de inovação da companhia aérea alemã.

Para além dos aviões, existem já carros e autocarros autónomos a serem testados por diversas empresas globais. Em 2072, todas as previsões para a mobilidade poderão parecer datadas, mas já não há como travar a evolução.

Rute Coelho

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