A bicicleta: uma arma poderosa, muito para além da mobilidade

2023
30-11-2023

O vereador da Câmara de Paris, Hermano Sanches Ruivo, Manuel Calvo-Salazar, do Estudio MC de Sevilha, e Emma Stubbe, da Dutch Cycling Embassy, juntaram-se ao investigador José Carlos Mota, para debater o papel da bicicleta na transição para uma mobilidade mais sustentável.

O tema em debate era a bicicleta como arma de transição. Mas não foi só de transição para a mobilidade que os intervenientes do debate da Cimeira de Cascais do Mobi Summit falaram. O que se ouviu de vozes experientes a nível internacional é que a bicicleta é também um veículo para combater a sinistralidade rodoviária, para as pessoas serem mais saudáveis e mais felizes, para produzirem mais e logo para se alcançar benefícios económicos. Porque se os benefícios para o planeta não sensibilizam tanta gente, os financeiros podem ser mais sedutores.

Em Portugal, numa década a falar de descarbonização e da construção de ciclovias, o aumento do uso da bicicleta “foi irrisório”, disse José Carlos Mota, investigador e professor associado da Universidade de Aveiro, nesta quinta-feira, último dia da conferência. Esses resultados levam-no a apontar a oportunidade de se reequacionar aquilo que são as cidades, os espaços públicos, os transportes, a habitação. Em suma: é preciso falar mais sobre ordenamento do território. Porque se não há forma de se levar um filho à escola sem ser no carro próprio, estes conceitos vão por água abaixo. E o cidadão deve ser chamado a dar a sua voz

As metas europeias estabelecem as reduções dos níveis de CO2 em 55% até 2030. Mas José Carlos Mota lembra que não é só porque a União Europeia o diz que se tem que fazer: há razões válidas para mudar e não são apenas ambientais ­­- há um número elevado de mortes na estrada, o modelo de vida urbana implementado levou a que o conceito de bairro se perdesse, as crianças já não brincam nas ruas que foram “cedidas” aos automóveis.

Emma Stubb, que trouxe à conferência os 40 anos de experiência dos Países Baixos, acrescentou as razões económicas, porque entende que este é um argumento que a todos sensibiliza. Exemplificou com um estudo que concluiu que o carro significa um prejuízo de 38 cêntimos por quilómetro para as cidades, os autocarros 29 cêntimos e a bicicleta um benefício de 68 cêntimos. “O custo do uso do carro para a sociedade é maior do que vem da receita dos impostos.”

Manuel Calvo-Salazar, diretor técnico do Estúdio MC, trouxe a experiência de Sevilha à conferência e entende que não basta falar de mobilidade sustentável e descarbonização, é preciso pôr números nessas expressões e nas necessidades de mudança que queremos fazer.

“Até 2030 temos que reduzir o movimento automóvel em 75%. Será que em sete anos poderemos ter 75% de carros elétricos e resolver o problema?” E foi mais longe: “O que estamos a fazer em Sevilha, Paris e Países Baixos não é o suficiente, essa é a verdade nua e crua. Tem que haver uma reconsignação massiva das prioridades e dos fundos – e isso é uma questão política.” 

Calvo-Salazar referiu que, em Espanha, 70% do espaço urbano é usado por carros e que uma mudança drástica terá de passar pela criação de uma rede de transportes fiável. O uso da bicicleta, por outro lado, só pode ser atrativo se houver uma rede de ciclovias, não apenas faixas aqui ou acolá. Exemplificou que Sevilha construiu a sua primeira rede em 2006-2008 com 80Km, que tem sido alargada, desde então, até aos cerca de 200 km atuais.  E disse que , nos últimos anos, o uso da bicicleta explodiu.

Hermano Sanches Ruivo, luso-descendente vereador na Câmara de Paris, embora concorde que os cidadãos devem ser ouvidos sobre as cidades, entende que as políticas devem ser disruptivas. E que foi a adoção de medidas fortes que elevou a capital francesa a um patamar próximo de Amsterdão ou de Copenhaga, dois modelos mundiais do uso de bicicletas. Paris tem atualmente 1000 quilómetros de ciclovias e projeta mais 130 quilómetros ainda este ano, dispondo de 250 milhões de euros para aumentar as infraestruturas.

O primeiro objetivo que moveu a Câmara de Paris foi assumidamente diminuir o número de carros na cidade – dois milhões de pessoas vivem na urbe e quatro milhões passam diariamente por lá. Apesar de admitir que o processo não é tão rápido como gostaria, o que justificou pela arquitetura institucional do estado francês, o vereador parisiense exemplificou com alguns incentivos que levou a que o uso da bicicleta tenha aumentado 60% nos últimos anos, como a atribuição de 400 euros na compra de uma bicicleta elétrica.

Há 40 anos que os Países Baixos começaram a transformação da mobilidade. Aproveitaram a crise petrolífera, os domingos sem carros e os números da sinistralidade para sensibilizar. “Trezentas crianças morriam por ano quando iam para a escola, 3 mil pessoas por ano morriam nas estradas”, disse Emma Stubbe.

Se estas crises foram um catalisador para os holandeses, Emma considera que outras situações menos boas podem ser aproveitadas para fazer a transformação: “O que não faltam por aí são crises, do ambiente, da obesidade…”

As mentalidades e a morfologia das cidades ajudam, mas a aposta em infraestruturas e parques com bicicletas partilhadas junto as estações de comboio ajudaram a que este meio de transporte vingasse.

Emma Stubbe terminou com um apelo: “Ponham os olhos nos Países Baixos, temos 40 anos de experiência. Venham copiar, adaptem às vossas cidades, vejam o que pode funcionar para vocês.”

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