“A vacina para a segurança rodoviária chama-se redução da velocidade”

2023
22-09-2023

Pedro Homem Gouveia, Senior Policy e Project Manager- Coordinator Governance & Integration da Polis Network, esteve na manhã desta sexta edição do Portugal Mobi Summit para apresentar o tema “Mobilidade Urbana – Um Futuro ao Contrário”.

Este especialista começou por explicar que, atualmente, em questões de mobilidade “feliz, e infelizmente, as tendências já são bastante claras”. “Já se sabe o que é que vai acontecer nas duas próximas décadas. A questão é o que é que queremos fazer. Sabemos que quanto menor a janela de oportunidade, mais profundas e mais rápidas têm que ser as mudanças. E esse é um aspecto que é de facto um enorme desafio para as nossas democracias”, referiu.

E, segundo Pedro Homem Gouveia, a mudança da mobilidade urbana apresenta oito dilemas. Um deles é saber se relativamente à mobilidade urbana sonhamos ou nos preparamos. “A inovação dos transportes é uma coisa que existe desde que existem transportes e os sonhos sobre a inovação dos transportes. É fácil nós ficarmos fascinados com o brilho dos sonhos e elevados por esse brilho esquecer aquilo que está sempre na base destes sonhos”, alerta o representante da Polis Network.

O que está na base destes sonhos é, como explicou, a infraestrutura física - as estradas, os cruzamentos, tudo aquilo que a faz funcionar. E, num segundo nível, está tudo aquilo que faz esta infraestrutura ser possível e funcionar, como o abastecimento ou o carregamento. E, por trás disto, está aquilo que faz todas estas coisas também serem possíveis, nomeadamente a iniciativa económica, porque é preciso financiamento, mas também o Estado de Direito, porque sem este não há pagamentos e sem pagamentos não há iniciativa.

Pedro Homem Gouveia alertou que nada funciona sem infraestrutura e que os tempos que aí vêm são muito ameaçadores para ela. Antes de mais, por causa das alterações climáticas e pelos impactos físicos brutais que terão, que se vão se converter em impactos brutais na economia, criando impactos sociais e, consequentemente, impactos políticos. “Não estou a falar apenas da ascensão de partidos negacionistas ou extremistas”, declarou, acrescentando que estes impactos terão consequências nos Orçamentos do Estado, que terão de distribuir meios públicos para estes desastres naturais, cortando assim verbas para a “inovação e para a transição de que precisamos”.

A covid-19 e a certeza de que fenómenos destes se irão repetir também é algo que se deve ter em conta. E aqui, Pedro Homem Gouveia, aproveitou para realçar o importante papel do transporte público. “Uma coisa que se tornou costumeira na sequência do covid foi dizer que ia ser o fim do transporte público. Mas, na realidade, o que se passou é que o transporte público, sendo financiado pelo Estado, continuou a funcionar, apesar de enormes hemorragias financeiras, e foi o facto de o transporte público continuar a funcionar que permitiu que os enfermeiros, os auxiliares médicos chegassem aos hospitais, que os caixas e os repositores de armazém dos supermercados mantivessem a cadeia de alimentação aberta, e que o pessoal de limpeza conseguisse chegar ao trabalho”, afirmou, sublinhando que “esta infraestrutura fundamental tem que continuar a existir”.

“O subfinanciamento do transporte público é um desastre humano em câmara lenta e é fundamental continuar a apoiar e a apoiar mais o transporte público”, garantiu o project manager da Polis Network.

O dilema do carbono

Outro dilema é a questão do carbono e a descarbonização da mobilidade. Começando por olhar para a questão das emissões, que são também uma questão de justiça social e de saúde pública.

“As emissões, quer dos motores quer dos travões, quer todas as outras poeiras para via pública, são uma ameaça que afeta de uma forma mais impactante os mais pobres. As pessoas que são mais impactadas pelas emissões do setor de transporte são aquelas que têm uma pegada carbónica mais pequena”, enuncia Pedro Homem Gouveia. “Este é um aspeto que tem que resolver e se vamos mudar a energia temos que aproveitar também para alavancar essa mudança e resolver este problema”.

Há também uma dimensão laboral por toda a Europa a ter em conta, pois a indústria automóvel funciona com base em clusters regionais. “Com a perspectiva de decréscimo na venda de automóveis com motores de combustão, a questão que se coloca para muitos destes clusters regionais é de sobrevivência”, prosseguiu este speaker, ressalvando que é preciso perceber a nível europeu “como é que se consegue reconverter esta indústria para novos modelos de negócio e obviamente também novos tipos de energia”.

Voltando aos mais desfavorecidos, Pedro Homem Gouveia, lembrou ainda que, quando falamos em penalizações fiscais e em controlo de acesso aos centros das cidades, “os mais pobres são mais impactados por este tipo de medida”. “Estamos a falar, por exemplo, da classe média e média-baixa que nas últimas décadas foi viver para os subúrbios e que agora, por exemplo, quando em Paris o presidente Macron decidiu aumentar um ponto percentual a taxa sobre os combustíveis se converteu na vaga dos coletes amarelos. E esta é uma outra questão que tem que se resolver e é uma dimensão de justiça”

A liberdade do automóvel

Pedro Homem Gouveia lembrou também que o automóvel é mais do que uma opção, é visto como um instrumento de liberdade, um símbolo de estatuto, fruto dos milhões de euros que foram investidos nesta ideia pela indústria automóvel nas últimas décadas. “E, portanto, quando hoje em dia se fala em limitar, reduzir, cortar, impedir ou taxar a utilização do carro, é por isso que a reação é tão profunda e tão emocional e tão difícil de lidar com ela”.

E deu como exemplo deste moldar de atitudes um atropelamento mortal ocorrido há uns anos no Campo Grande, em Lisboa, em que perdeu a vida uma jovem ciclista de 16 anos. Questionou-se se ela levaria capacete, se teria atravessado com um semáforo verde ou na passadeira, etc. E ninguém se lembrou de questionar o que ia o condutor do carro a fazer – ia a olhar para o telemóvel e não viu que o semáforo estava vermelho. “Esta mentalidade carrocêntrica é também uma enorme barreira para a intervenção na segurança rodoviária”, referiu.

Outra face deste dilema é o facto de, durante o último século, o carro ter permitido a expansão urbana descontrolada, com a criação de zonas onde as pessoas estão, de facto, dependentes do carro ou com o dilema de usarem os transportes públicos, mas perderem assim tempo útil com a família.

Neste sentido, Pedro Homem Gouveia deu o exemplo de um inquérito feito em Lisboa em 2018, no qual havia inúmeros agregados familiares a gastar entre 20 e 25% do seu orçamento com o automóvel. “Se é assim no centro de Lisboa, imaginem na periferia”.

“As pessoas estão de facto, dependentes do carro, e quando nós vivemos num ecossistema em que todas as outras alternativas são muito mais penalizadoras do ponto de vista do tempo ou do ponto de vista da segurança, não podemos dizer que existe a liberdade de escolha. O que o que existe é uma racionalização de uma dependência. As pessoas dizem que gostam do carro e que fazem assim porque querem, porque, na realidade, sentem que não têm outra escolha. E esta mentalidade carrocêntrica é também aquilo que nos tapa à vista das inúmeras opções que já existem e que estão a crescer”, declarou.

Na opinião deste especialista, o desafio que nós temos não é passar do modo A para o modo B, passar do carro para andar a pé, ou passar do carro para andar de bicicleta, ou passar do carro para andar de transporte público O grande desafio é passar de uma mobilidade monomodal para uma mobilidade multimodal, “porque as nossas necessidades são diferentes de pessoa para pessoa, de dia para dia, da semana, de mês para mês, de ano para ano, consoante o tipo de viagens que queiramos fazer. O grande desafio é criarmos uma oferta que seja capaz de responder eficazmente esta diversidade de necessidades”.

App ou a rua?

Outro dos dilemas que se coloca é se temos de criar mais apps ou mudar a rua. E o caso das trotinetas na Europa é um excelente exemplo, segundo Pedro Homem Gouveia. “As trotinetas são um exemplo perfeito daquilo criar num novo serviço numa área que não está regulamentada. Foi assim também que surgiu a Uber”.

E entre as várias coisas que se passaram com as trotinetas há duas que são as mais faladas e também as mais exemplificativas. “Toda a gente se queixa que as trotinetas andam os passeios. Isso é um sintoma, não é uma causa. Elas andam nos passeios porque os condutores têm medo de andar com elas na faixa de rodagem. As trotinetas estão estacionadas caoticamente pelos passeios. Esse é um enorme problema, mas é um efeito, não uma causa. A causa é que não há lugares para estacioná-las suficientes porque o automóvel individual detém o monopólio sobre o estacionamento em meio urbano”, exemplificou.

Outro exemplo são os carros autónomos, que não têm condições para funcionar nas estradas de hoje. “A nossa via pública é um fartar de vilanagem, cada um faz o que quer, estaciona onde quer, anda a velocidade quer. E isto está a bloquear a inovação tecnológica”, garantiu.

Para contrapor estas situações é “fundamental baixar a velocidade”. “Várias cidades europeias estão a reduzir a velocidade em amplas áreas. Bilbau, Bruxelas, Barcelona, Paris, Londres”.

“Reduzir as velocidades é a forma mais eficaz e mais rápida de reduzir a sinistralidade rodoviária, como demonstra um número cada vez maior de cidades que está a atingir o número zero de vítimas mortais. Se nós olhássemos para os problemas da segurança rodoviária como um vírus, rapidamente percebíamos que a vacina já foi inventada e a vacina chama-se redução da velocidade e há imensas soluções práticas para isso”.

Ana Meireles

Artigos relacionados

Mais de 580 PME instalaram carregadores da EDP acessíveis ao público

Marco Galinha: "A mobilidade urbana exige desafios aos políticos, empresas e cidadãos"

Filipe Anacoreta Correia: "90% da poluição dos carros é causada por veículos com mais de dez anos"