
China controla a cadeia mundial de produção de carros elétricos

Nos próximos anos, será difícil construir automóveis elétricos sem alguma forma de cooperação com produtores chineses que dominam os processos de fabrico e a refinação de matérias-primas da transição energética. Uma dependência arriscada para a UE.
Mais de metade das baterias de carros elétricos em circulação são produzidas por empresas chinesas, mas o controlo de Pequim sobre o setor é ainda mais extenso, sobretudo na refinação de matérias-primas. Além de produzirem dois terços das células de baterias, as empresas chinesas têm enorme influência em todas as fases da extração e refinação dos metais.
Segundo noticia o New York Times, a China usa processos mais baratos e competitivos, afastou produtores de outros países e conseguiu o controlo mundial de 95% da refinação de manganésio, 73% do cobalto e 67% do lítio, entre outros minerais usados no fabrico de automóveis elétricos.
A situação dos fabricantes de carros é ainda mais vulnerável, pois as empresas chinesas dominam a produção internacional de componentes essenciais para a produção de energia nas baterias mais avançadas (92% dos ânodos, 77% dos cátodos, 82% dos eletrólitos).
O controlo chinês na produção é de tal forma extenso, que os especialistas citados na notícia do New York Times reconheciam não ser possível o sucesso na construção de carros elétricos sem uma qualquer forma de cooperação com a China. Há mesmo quem considere que os países ocidentais devem desacelerar os seus planos de transição industrial em curso, visando alterar a tecnologia de automóveis de motores a combustão interna para carro elétrico, já que se trata de apostar numa tecnologia com domínio de um país que pode a todo o momento impor restrições inesperadas.
Apesar de conhecerem esta e outras vulnerabilidades, os países da União Europeia decidiram que a partir de 2035 não haverá mais vendas de carros com motor de combustão interna. A meta parece ser difícil de atingir, sobretudo por causa das baterias, cuja produção é complicada e depende de um país exterior à UE.
A vulnerabilidade europeia
O calendário do fim dos motores de combustão será acelerado em relação ao que existia em 2021, que apontava para 40% de carros elétricos em 2030 e a totalidade só em 2040. Desta forma, estamos a assistir a duas grandes corridas: por um lado, a produção de veículos elétricos mais eficientes e com baterias mais leves; por outro, a construção em toda a Europa de enormes complexos (as chamadas Gigafábricas) para produzir essas baterias.
Quantas serão necessárias? Pelo menos 12 milhões por ano, se a produção de veículos não aumentar na Europa. O mais provável é que a procura exceda os 15 milhões de veículos. Há numerosas empresas europeias, americanas, sul-coreanas ou chinesas envolvidas nas baterias do futuro, com elevados subsídios dos países onde este setor está a florescer. Todas os meses têm surgido notícias de um novo projecto com produção anual de dezenas de gigawatts-hora (GWh) e custo de centenas de milhões de euros. Na Alemanha, Polónia, Hungria, Suécia, França ou Espanha estão a funcionar ou a ser construídas 35 fábricas de baterias para automóveis, todas a usar tecnologias semelhantes e a depender das matérias-primas que a China controla.
A Northvolt, da Suécia, está a construir no seu país uma unidade de 16 GW; a coreana Samsung SDI tem um projecto de 20 GW na Hungria e a LG Chem estará na Polónia com uma fábrica de 32 GW. Estes são apenas alguns exemplos. As maiores instalações vão abastecer fábricas de automóveis a ritmo de centenas de milhares de baterias anuais. Feitas as contas, a Europa precisa, antes de 2035, de pelo menos o dobro das fábricas atualmente em atividade ou em construção.
Os projetos estão a receber dinheiro do imenso pacote europeu de 2 biliões de euros (milhões de milhões) em fundos comunitários e programas de recuperação: o primeiro pacote, até 2027, terá verbas de 1,2 biliões de euros e o segundo, conhecido em Portugal por PRR, pode ascender a 800 mil milhões de euros. A produção de baterias para automóveis é um dos pontos cruciais da transição energética e recebe a máxima atenção das autoridades. Também têm surgido notícias sobre inovações tecnológicas, por exemplo, uma mudança de conceito que permite reduzir o peso da bateria para metade, mas ninguém sabe ao certo quando é que estas ideias serão comercializadas ou qual o seu impacto no atual uso e reciclagem de minerais. A que ponto é que estes dados mudam o controlo chinês? É pouco claro e, a acontecer, levará anos.
Minerais estratégicos
A questão vai muito além da mobilidade e da indústria automóvel. O maior problema da transição energética europeia estará sobretudo no acesso aos minerais estratégicos, nomeadamente às terras raras, cobalto, níquel, lítio, alumínio e cobre. Segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), os veículos elétricos são dispendiosos em determinados metais refinados, consumindo em média 53 quilogramas (kg) de cobre, 24 de manganésio, 40 de níquel, 66 de grafite e quase 9 de lítio. Um carro convencional, em contraste, necessita apenas de 22,3 kg de cobre, 11 de manganésio e dispensa os restantes. Os carros elétricos são ainda pesados, o que pode ter consequências na infraestrutura rodoviária, nas pontes, por exemplo, embora esse seja outro problema.
Para concluir a eletrificação do parque automóvel, a indústria europeia precisa de garantir acesso barato a estas matérias-primas. A necessidade é incerta. Aliás, a China não é o único país com elevado controlo dos circuitos de produção, mas também a Rússia, grande ator mundial no mercado de níquel, paládio, cobre e alumínio, entre outros. Após a invasão russa da Ucrânia e das sanções ocidentais, houve grande perturbação nos mercados e períodos de instabilidade nos preços.
O problema tem preocupado as autoridades europeias, dada a vulnerabilidade da UE no aprovisionamento de matérias-primas estratégicas, sobretudo para as áreas ligadas à transição energética, incluindo os veículos elétricos.
A dependência europeia está estudada e quantificada. Os números mais recentes sugerem que num cenário de baixo consumo de minerais, as necessidades globais da UE em lítio passem de 12,3 mil toneladas em 2020 para 157 mil toneladas em 2030. Na grafite, os números são ainda mais alarmantes, pois as necessidades vão crescer pelo menos 14 vezes. Isto terá enormes consequências na criação de stocks, na segurança dos abastecimentos e no preço dos automóveis.
Em março de 2022, os líderes europeus aprovaram a declaração de Versalhes, que visou reforçar as capacidades de defesa e a base económica da UE, reduzindo a dependência energética. Um dos pontos essenciais era garantir a segurança estratégica em matérias-primas.
Já este ano, a Comissão publicou um estudo sobre materiais críticos que detetava grandes limitações no acesso a titânio, tungsténio, níquel ou fósforo, entre dezenas de matérias-primas. Existe uma política oficial para reforçar as fontes de aquisição e o comércio externo, elevando para 10% do consumo o nível de extração em solo europeu destes diferentes metais.
Metas de reciclagem
A Comissão Europeia pretende até ao final da década atingir uma meta de reciclagem de pelo menos 15% do consumo. Este dado é também uma grande incógnita, pois as tecnologias não estão ainda desenvolvidas. Se a UE conseguir reciclar numa proporção acima desta, o problema pode não ser tão grave a longo prazo.
Há, apesar de tudo, elementos incontornáveis: a China fornece a totalidade de vários destes metais. Um exemplo muito simbólico é o Európio, descoberto em 1901 e cujo nome é uma homenagem à Europa. O elemento 63 na tabela periódica tem uso em peças de reatores nucleares e fabrico de lasers, não é usado em carros elétricos, mas o que é consumido nas indústrias europeias vem totalmente da China.
O Európio é apenas um dos 17 elementos conhecidos por terras raras (nem todos importantes, nem todos raros). A questão é que 80% das terras raras estão na Ásia e algumas serão relevantes na transição energética.
A vulnerabilidade dos consumidores implica instabilidade de preços e já se fala em organizações de exportadores capazes de imitar em alguns metais aquilo que a OPEP representa para o petróleo. Neste momento, os preços das matérias-primas estão ainda em queda: o lítio caiu 52% num ano, o cobre 13%. No entanto, as necessidades da indústria serão elevadas, a ponto de tornarem improvável que esta tendência se mantenha.
Luís Naves