
Estigma do transporte público está a adiar a transição energética

Lisboa, Porto e Braga vão apostar em corredores rápidos de autocarros para aumentar a adesão aos meios coletivos. A baixa de preços dos passes aumentou o número de utentes, mas não quebrou o vínculo ao carro individual. É uma das conclusões do primeiro debate PMS2023.
Como atrair mais passageiros para o transporte público? É uma espécie de pergunta de um milhão de dólares, mas quando perguntamos ao Chat GPT (o algoritmo de inteligência artificial) ele elenca uma série de medidas. A vereadadora para a Mobilidade de Braga, Olga Pereira, fez o exercício e confirmou as respostas: “investir em transportes públicos de qualidade; ter infraestruturas adequadas; incentivar o transporte coletivo com os corredores dedicados; restringir o uso do carro particular; criar zonas de zero emissões; promover espaços atraentes; fazer parcerias com grandes empresas, universidades, centros comerciais”.
O diagnóstico está feito e, se assim não fosse, a inteligência artificial não chegaria lá. Mas o que estão a fazer municípios e autoridades de transportes para garantir uma maior intermodalidade e a redução do uso do carro? Este foi o tema do primeiro debate da 6ºedição da Portugal Mobi Summit ocorrido esta semana, que contou ainda com as participações de Cristina Pimentel, presidente dos STCP (Serviços de Transporte Coletivo do Porto) e Rui Lopo, administrador da Transportes Metropolitanos de Lisboa (TML) e com a moderação de Paulo Tavares.
E os conselhos da inteligência artificial estão a começar a fazer caminho tanto em Lisboa como no Porto e em Braga, com as três cidades a projetarem corredores rápidos de transportes (BRT) nos grandes eixos viários, de modo a que os autocarros não fiquem presos nos mesmos constrangimentos de trânsito dos carros particulares nos acessos aos centros urbanos. Braga e Porto vão mais rápidas do que Lisboa.
Em Lisboa, o tema “está na agenda, mas ainda vai demorar”, disse Rui Lopo. “Está previsto um corredor rápido para autocarros a sul do Tejo, com a expansão do metro a sul, e outros corredores de alta velocidade na margem norte também”, revelou o administrador da TML. O responsável lembrou que a dimensão da área metropolitana de Lisboa não é comparável às restantes. Na AML a gestão da operação implica mais de 12 mil paragens, 1600 autocarros, 3 mil km2, 18 municípios, e 2,5 milhões de pessoas, sem turistas incluídos. “É colossal”, resume Rui Lopo. “Tínhamos 7 a 8 operações rodoviárias, agora conseguimos juntar tudo no passe Navegante”.
No Porto, a nova estratégia para imprimir mais velocidade aos autocarros já está em andamento. Segundo a presidente dos STCP, o Porto está a construir um canal de BRT desde a Avenida Boavista, passando pela Praça do Império até Matosinhos, que deverá estar concluído em finais de 2024 e será operado pela STCP. Cristina Pimentel refere ainda que neste sistema, o bilhete é validado na estação e não no autocarro, que deverá ter uma frequência de 4 em 4 minutos. “Isto é algo de estruturante que vai contribuir para melhorar decisivamente a circulação na cidade”, considerou. A executiva adiantou que está em construção a Linha Rosa do Metro do Porto e a expansão da Linha Amarela até Gaia e também a Linha Rubi.
Em Braga, a aposta para melhorar a previsibilidade dos autocarros também passa pelos corredores de alta velocidade. O projeto de 100 milhões de euros foi apresentado no início de abril, ao abrigo do PRR, disse a vereadora. Olga Pereira explicou que vão nascer 4 corredores, nomeadamente “para voltar a coser a cidade que foi rasgada ao meio por uma via rápida”. Em causa estão10 novas paragens, para abranger zonas que até aqui não eram servidas pelo transporte público. O município de Braga tem igualmente a intenção de integrar o serviço de transporte com os municípios vizinhos e com o Porto, para onde existe um fluxo importante de viagens diárias, e criar um bilhete único.
Alterar comportamentos
Para aumentar a adesão das pessoas ao transporte público não basta investir apenas em infraestruturas e equipamentos, é preciso também combater o estigma do coletivo versus o individual, concordam os convidados do debate PMS.
“Sim, há uma resistência”, admite a autarca de Braga. “ O transporte individual representa realmente uma conquista social para muita gente, sobretudo para uma geração mais velha: como é que vou dizer ao meu pai para andar de bicicleta ou transporte público quando foi assim que ele começou a sua vida quando não tinha dinheiro? Usar o carro tornou-se uma questão de status, pelo que é preciso fazer todo um trabalho, uma campanha mesmo”.
Esse estigma é igualmente apontado pela presidente dos STCP: “há alguma resistência, não digo do Metro do Porto, que é um meio mais moderno e novo, mas sobretudo no transporte rodoviário com os seus 150 anos de história”. Cristina Pimentel considera que tem sobretudo a ver com a baixa frequência das carreiras e dos constrangimentos de trânsito que têm de partilhar com o resto da cidade.
Rui Lopo não tem dúvidas sobre a origem do estigma: “quando o sistema de transportes funciona mal não há adesão. Durante muito tempo, o uso do transporte coletivo não foi incentivado e, agora, por questões ambientais estamos a incentivar. Têm mesmo de se tomar medidas de promoção do transporte público para alterar comportamentos”. É essa realidade que temos de inverter e, por isso, a TML está a lançar uma campanha para atuar nos hábitos culturais. “A ideia da campanha é que é mesmo melhor para as pessoas, para a sua qualidade de vida e para o ambiente”. Mas, depois também há que contar com alguma areia na engrenagem. “Nesta campanha que estamos a fazer para desincentivar o uso do carro, sofremos pressões para não colocar essa comunicação em alguns espaços de estacionamento privados”, denunciou o responsável. Por outro lado, “os parques de estacionamento não podem canibalizar os autocarros. Neste momento temos artérias entupidas com carros em direção às estações e interfaces”, lamenta.
A verdade é que continua a existir uma resistência à mudança, mesmo com a baixa de preços. O administrador dos Transportes Metropolitanos de Lisboa exemplifica: “no espaço da Área Metropolitana de Lisboa os preços do passe Navegante registaram uma descida notável de um valor médio de 80 para 40 ou 30 euros. E, apesar de poderem ser usados em toda a área e em todos os meios, mesmo assim não se conseguiu inverter de forma disruptiva a utilização do transporte individual”. A contraciclo, acrescenta, “vai-se alargar a autoestrada da margem sul, para ter mais uma faixa e trazer mais carros para Lisboa”.
O fator preço e qualidade
Na mesma linha, a presidente dos STCP, diz que para além da redução significativa dos preços, “a qualidade dos transportes nunca foi tão boa”. A idade média da frota do STCP é de 6 anos e há um novo investimento extraordinário na renovação da frota. “Quanto à frequência das carreiras temos ainda de fazer um longo caminho. Ainda funcionamos muito por horário e não tanto por frequência, e temos de a melhorar”.
No município de Braga, a autarquia tem a exclusividade na operação dos transportes urbanos. “Temos investido tanto na descarbonização da frota de autocarros, como na promoção de novas linhas e na redução de preços”, diz Olga Pereira. Por exemplo, os estudantes até ao 12º ano não pagam, há um desconto de 50% para estudantes universitários, e uma modalidade park and ride, que custa 1 euro ida e volta adequado aos grandes eventos. No que diz respeito à frota, “a idade média baixou de 19 para 15 anos”, sendo que a autarquia adquiriu 30 veículos elétricos que estão em fase de entrega.
São medidas para facilitar o uso de soluções coletivas e mais sustentáveis.
Em consequência, “o número de utentes na cidade aumentou 23% acima dos valores pré-pandemia”, revelou ainda aquela vereadora.
O papel das escolas na mudança
Colocar as escolas como agentes de mudança dos comportamentos, mas também na própria melhoria da circulação rodoviária é uma das soluções propostas por quem estuda a mobilidade urbana e foi tema de debate.
“Tem de haver aqui uma abordagem disruptiva relativamente às escolas”, diz Rui Lopo. “Por um lado, é preciso colocar os autocarros a servir diretamente as escolas; por outro pôr as escolas a pensar nos horários, porque se todos os alunos tiverem o mesmo horário em todas as escolas os transportes não conseguem dar vazão”. E esta abordagem é necessária, na medida em que uma elevada percentagem das viagens de carro são justificadas pelos pais para levar os filhos à escola.
Braga já começou a tomar medidas nesta matéria, nomeadamente com o projeto Braga School Bus, com o qual ganhou um prémio. “O município consegui evitar a entrada de 400 viaturas no centro, criando um sistema gratuito de transporte e recolha de crianças a partir de três interfaces na cidade”, adiantou Olga Pereira. “Só com isso poupámos mil quilos de CO2”. E a ideia é estender a todas as escolas no próximo ano letivo.
“Envolver as escolas é realmente uma prioridade, até porque essa é a geração que queremos conquistar para o transporte público. E temos de oferecer confiabilidade, modernidade e conforto para que a intermodalidade seja uma coisa natural”.
Carla Aguiar