
Europa e América divergem nos sistemas de carregamento de veículos elétricos

Tesla está a impor a sua própria norma nos EUA e controla todo o sistema, do fabrico à estação de serviço. Europa apostou num modelo diferente e Bruxelas quer acelerar a rede.
Os mercados europeu e americano podem estar a divergir num elemento crucial da tecnologia de carros elétricos: a norma de carregadores. Industriais e governos queriam uniformizar as estações de recarregamento, permitindo que as diversas marcas pudessem usar os mesmos postos, mas nos últimos meses ocorreu nos Estados Unidos um processo de concentração em apenas uma das soluções, sendo possível que acabe excluída do mercado americano a opção que as instituições europeias favoreceram.
A Europa parece apostada na tecnologia de carregamento CCS (Combined Charging System), mas a Tesla de Elon Musk (a marca com crescimento mais rápido) tem uma norma própria, North American Charging Standard, NACS, que equipa estações de carregamento rápido a que a empresa chamou Superchargers. Este é provavelmente um caso de compêndio de uma tecnologia que ganhou vantagem por ter aparecido primeiro do que as outras.
A Tesla investiu numa rede própria de carregamento e desenvolveu as suas próprias soluções. A ideia de Musk é controlar todo o sistema, do fabrico ao carregamento, incluindo o caseiro, pois a marca também fornece soluções integradas (com painéis solares, bateria doméstica e carregamento do carro elétrico). Conseguiu isto sem fundos federais. As outras marcas, sobretudo japonesas e europeias, atrasaram-se no mercado americano e estão a aderir à norma usada pela Tesla, estabelecendo acordos para os seus automóveis poderem usar os superchargers.
A Europa foi por outro caminho. Os próprios governos, sob impulso da Comissão Europeia, estão a incentivar a criação de uma rede que pode ser utilizada por todos os veículos elétricos. Ao ritmo a que se está a desenvolver a teia de estações de carregamento, a União Europeia terá em 2030 uma capacidade pelo menos 50% superior à da rede americana, mas isto pode ser insuficiente. Tendo em consideração o aumento previsto na venda de carros elétricos, para atingir os objetivos de redução das emissões, a Europa deve conseguir erguer, em 2030, pelo menos 6 milhões de postos de carregamento. O número atual não chega a 250 mil e o ritmo de construção é demasiado baixo. É preciso atingir um valor próximo de um milhão por ano.
A aritmética é impiedosa e os números portugueses também parecem lentos. Com 2,3% do território europeu, Portugal devia ter mais de 120 mil carregadores em 2030. Números do Automóvel Clube de Portugal (ACP) sugerem que são construídos semanalmente apenas 26 novos postos de carregamento. A rede atual tem 5500, dos quais quase mil de carregamento rápido, mas a expansão decorre a ritmo de 1300 postos anuais. Em resumo, se este valor não for multiplicado por dez, num prazo de sete anos não haverá postos suficientes para os veículos elétricos em circulação nas nossas estradas.
Europa a duas velocidades
Mesmo que sobrevivam as duas normas de carregadores, a indústria automóvel terá problemas na expansão dos carros elétricos. No mínimo, haverá fragmentação dos mercados ou o triunfo dos construtores com maior volume. Tudo isto implica custos e negociações difíceis entre os rivais da indústria.
A União Europeia tem grandes ambições na redução de emissões de gases com efeito de estufa e a sua aposta na mobilidade sustentável é considerada uma prioridade política. A norma CCS foi adotada em 2014 e no próximo ano entra em vigor uma lei que prevê a expansão uniforme e mais veloz da rede de carregamentos.
Segundo um estudo da Associação Europeia de Construtores Automóveis (a maior do setor, ACEA), existe um fosso significativo entre Estados. Mais de 70% das estações de carregamento de carros elétricos concentram-se apenas em três países (Holanda, França e Alemanha). Isto equivale a 23% do território da UE. No sentido inverso, menos um terço da infraestrutura cobre 77% da superfície da UE.
As novas regras europeias tornam mais simples o processo de encher a bateria e pagar. É criado um limite de 60 quilómetros entre dois postos de abastecimento nas estradas principais. Até 2026, estas estradas terão postos de carregamento de pelo menos 400 kW (Kilowatts) para veículos de passageiros e comerciais; em 2028, o mínimo será de 600 kW. Para camiões e autocarros, nas mesmas estradas, o intervalo mínimo entre postos será de 120 quilómetros e os carregadores terão capacidade de 1,4 a 2,8 MW (Megawatts). Apesar de tudo, existe o risco de uma Europa a duas velocidades.
O outro grande problema europeu é industrial: pressionadas pelo aumento dos custos de energia e pelo controlo chinês do processo de construção de baterias, as grandes construtoras europeias estão sob pressão económica, com a perspetiva de perderem quotas de mercado. Falta também saber até que ponto a Tesla e as marcas chinesas tentarão dominar a infraestrutura de carregamento. Na América, o plano do dono da Tesla é controlar tecnologia de baterias, vendas de automóveis e rede de reabastecimento.
Lições do passado
Isto faz lembrar episódios anteriores de normas rivais na indústria, por exemplo, nos vídeos ou na televisão. No início do desenvolvimento do negócio havia duas ou mais normas, depois os consumidores começavam a preferir uma das tecnologias e as empresas que tinham apostado nos formatos minoritários perdiam grandes somas de dinheiro. Isso pode acontecer agora no carregamento rápido dos veículos elétricos. A norma CCS-1 estará em risco na América, onde a NACS continua a ganhar fatias do mercado.
A coexistência pacífica não será fácil de manter, pois a falta de infraestrutura das marcas menores está a obrigar a acordos com a Tesla de utilização dos superchargers. Isso implica equipar os veículos com duas formas de carregamento. Honda e Mercedes são os mais recentes construtores a negociar com a empresa de Elon Musk, mas antes foi assegurada a adesão dos dois maiores construtores de automóveis americanos, Ford e GM, que têm ambições no setor elétrico. Em resumo, o sistema NACS ultrapassou os 70% do mercado americano e tem um domínio crescente, pois a Tesla produz mais de metade dos novos carros elétricos na América.
Há aqui outra complicação: o governo federal apostou no CCS-1 e continua a pagar apenas esta rede, enquanto a Tesla dispensou os subsídios de Washington, embora tenha recebido incentivos do Texas e da Flórida. A marca de Musk tem 1800 estações nos EUA, mas quase 20 mil carregadores, o dobro do CCS, apesar desta ter 5200 estações. A ideia de construir estações com muitos postos deu resultado.
As marcas podem usar a infraestrutura da Tesla e o próprio Musk admite que a sua intenção é controlar o carregamento. Veremos nas próximas semanas o que vão fazer as marcas que ainda resistem, por exemplo Volkswagen ou Hyundai, que estão em negociações, mas sobretudo Toyota. A norma europeia, CCS-2, é privilegiada pela UE, mas os Tesla têm um adaptador que permite a sua utilização. Ou seja, na UE existe uniformidade.
Do ponto de vista da engenharia não há muita diferença entre as duas tecnologias. A NACS parece menos complicada e ocupa menos espaço no carro. Qual foi a vantagem da Tesla no mercado americano? A sua rede atingiu uma dimensão considerável, o pagamento é mais fácil e há proporção mais elevada de consumidores com este veículo.
Os analistas dizem que a norma CCS está ameaçada nos EUA, mas o cenário pode não ser tão desfavorável. Os veículos terão um adaptador que permite o uso das duas tecnologias (implica custos) e a rede de carregadores vai crescer, já que foi formado um consórcio de marcas que pretende investir numa expansão mais rápida do carregamento CCS. No entanto, com as três marcas americanas a bordo do NACS, a luta não será fácil.
Na Europa, o CCS-2 é dominante, mas a Tesla vai ter uma palavra a dizer no carregamento. Estão a ser construídos superchargers da marca com maior capacidade (600 kW) que podem ser usados por outras marcas. O construtor automóvel deixou de ser apenas o fabricante das máquinas, mas assegura algum domínio sobre o carregamento. É uma nova forma de indústria, a marca controla todo o sistema de consumo dos carros. No fundo, é como se a os construtores de automóveis da geração anterior com motores a combustão tivessem igualmente desenvolvido a infraestrutura de estações de serviço. No passado, fizeram apenas os carros e as petrolíferas trataram das estações. No futuro, o fabricante vai ganhar dinheiro a recarregar baterias e se estas permitirem uma viagem de mil quilómetros, talvez não sejam necessários tantos postos de carregamento.
Luís Naves
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