Transição energética corre mais depressa do que se previa

2023
27-10-2023

O mais recente relatório da Agência Internacional de Energia (IEA) sublinha os novos riscos políticos, mas o estudo conclui que ainda é possível atingir em 2050 a meta de 1,5 graus centígrados de aumento da temperatura global. Outro motivo para haver esperança: estamos perto do pico do consumo de petróleo.

Há incógnitas geopolíticas a ameaçar o setor da energia, mas também oportunidades. A guerra da Ucrânia provocou forte aumento de preços e a crise no Médio Oriente pode causar mais turbulência. Existe, no entanto, uma diferença em relação a 1974, auge do primeiro choque petrolífero, quando foi criada a Agência Internacional de Energia: agora, temos consciência do perigo das alterações climáticas causadas pelo aumento na atmosfera de gases com efeito de estufa, sobretudo dióxido de carbono que resulta da queima de combustíveis fósseis.

O aquecimento em relação ao período pré-industrial já atingiu 1,2 graus centígrados e os governos mundiais comprometerem-se a limitar as emissões, para que que a temperatura do planeta não ultrapasse um aumento médio de 1,5 graus centígrados em 2050. O mais recente relatório da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla inglesa) conclui que será difícil, mas é possível que o planeta fique abaixo daquele limiar. As questões geopolíticas tornam a equação complexa, mas o facto é que a guerra da Ucrânia convenceu a União Europeia a acelerar a transição energética.
 
Os motores principais da transição são os painéis solares e os veículos elétricos, tecnologias amadurecidas, cujo custo continua a diminuir. Em 2020, em cada 25 carros vendidos, um era elétrico; em 2023, a proporção passou para um elétrico em cinco vendidos. A geração de energia solar está a crescer e o investimento mundial no setor é enorme, da ordem de mil milhões de euros diários, pode ler-se no documento da IEA. O estudo também considera positivas as perspetivas do nuclear. O setor da energia parece no bom caminho para a descarbonização, mas nos próximos 30 anos tudo vai depender da extensão da fragmentação política.

A energia sustentável cresceu em países ricos, mas há maiores dificuldades nas nações mais pobres. A segurança energética é um fator, mas sobretudo a economia, pois as tecnologias da transição estão a atingir patamares de preços que as tornam mais vantajosas do que as anteriores, baseadas em combustíveis fósseis. Os mecanismos de mercado viabilizam o processo, daí não ser descartada neste estudo a hipótese de se conseguir controlar a febre do planeta. 

Pico de petróleo
Antes de 2030, será atingido o pico de consumo de combustíveis fósseis. Esta é talvez uma das conclusões mais relevantes do relatório. A mobilidade é a alavanca desta transformação civilizacional, pois a venda de veículos a gasolina e diesel já atingiu o seu máximo. A queima de combustíveis fósseis (carvão, petróleo, gás natural) vai começar a diminuir, após anos de uma expansão que parecia interminável. Nas últimas duas décadas, por exemplo, o consumo de petróleo aumentou em 18 milhões de barris diários. Nesse período, a frota automóvel mundial cresceu em 600 milhões de veículos e os carros consomem agora 45% do petróleo queimado, cujo total ronda os 100 milhões de barris diários.

Isto vai mudar: em 2023, a quota de veículos elétricos deve já atingir 18% das vendas. No final da presente década, o setor dos transportes rodoviários não terá mais impacto no aumento da procura de petróleo. Haverá ainda pressão na indústria petroquímica, na aviação e nos transportes marítimos, onde as tecnologias de descarbonização estão atrasadas. O consumo mundial de carvão encontra-se em declínio, enquanto petróleo e gás natural vão cair gradualmente, culminando em descidas acentuadas, ao longo da quinta década deste século.
  
A energia solar é o outro grande motor da transição energética. A produção anual de painéis fotovoltaicos duplicará a médio prazo, em relação ao patamar de 2022, quando se registou uma capacidade de 640 GW (Gigawatts). Na última década, a energia solar produzida aumentou sete vezes, expansão impressionante, apesar de haver um crescente fosso entre fabrico e instalação. Outra dificuldade: a concentração geográfica do fabrico, com a China a dominar o mercado (80% da produção), o que tem originado medidas restritivas, incluindo tarifas à importação impostas nos EUA.

Nos próximos anos, a China pretende duplicar a sua atual capacidade de fabrico, adicionando outros 500 GW, ou seja, é provável que se mantenha o domínio chinês do mercado mundial, mas a Índia pode tornar-se um rival. A União Europeia aposta fortemente na introdução da energia solar, mas depende de importações.

Incógnita adicional: o abrandamento da economia chinesa. Desde 1995, o produto per capita na China aumentou sete vezes. Na última década, aquele país foi responsável por mais de um terço do crescimento económico mundial, com especial destaque para os mercados de energia, com metade do aumento da procura.

O facto é que o crescimento económico chinês vai abrandar. A redução da população em idade de trabalho e do investimento prometem reduzir a taxa média de expansão económica. Há setores endividados, como construção, metais, madeira e fertilizantes. Os autores do relatório consideram que esta mudança terá forte impacto no setor energético mundial. No cenário proposto, a economia chinesa vai expandir-se anualmente a uma taxa de 4%, valor que cairá para uma média de 2,3% no período entre 2031 e 2050.

As necessidades de energia da China devem estabilizar em meados da atual década, prevê o estudo, resultando em emissões muito abaixo do que se admitia em relatórios anteriores. Pensava-se que a China, nos próximos 30 anos, ia ser o maior fator de aumento de dióxido de carbono, mas não será assim.

Motivos de esperança 
O limite de 1,5 graus centígrados no aumento da temperatura média global em 2050 mantém-se como cenário possível. A hipótese de se conseguir atingir o patamar de zero emissões dentro de 27 anos é justificada com a velocidade a que estão a ser adotadas as novas tecnologias de energia limpa.

"Em setembro de 2023, os compromissos ligados às [políticas] de emissões zero cobriam mais de 85% das emissões [de gases com efeito de estufa] do setor da energia e 90% do PIB" mundial, pode ler-se no documento. Neste momento, há 99 países que aprovaram compromissos e em todo o mundo os governos estão a assumir novas ambições. Por outro lado, o ritmo da adoção dos carros elétricos surpreendeu toda a gente, sendo provável que se atinja a meta de 2030, com dois elétricos em cada três carros vendidos.

Os mecanismos de preço estão a funcionar e há inovações constantes (reciclagem, baterias sólidas, painéis solares mais eficientes). "A nossa previsão é de que a capacidade de fabrico de painéis solares e baterias de carros elétricos seja suficiente para atingir a procura que permite cumprir o cenário de emissões zero", consideram os autores. As energias renováveis já são competitivas e as empresas gastam somas enormes em investigação e desenvolvimento. Ao longo desta década, o consumo de combustíveis fósseis deverá cair pelo menos em 25% do valor atual, sobretudo à custa do carvão.

A questão social
Existe apesar de tudo uma limitação nas tecnologias de energia limpa, nomeadamente a concentração geográfica, sobretudo na China. Num contexto de tensões geopolíticas, qualquer conflito pode levar a ruturas, mas também um acidente industrial ou episódios de clima extremo. Outro problema potencial discutido no documento é a desigualdade social, já que muitas medidas ligadas à transição afetam sobretudo os mais pobres. Veja-se por exemplo o gasto que uma família rica terá com a conservação de energia na sua casa, muito menor do que é necessário para uma família pobre com habitação mais modesta.

A questão dos minerais também é mencionada no longo relatório da Agência Internacional de Energia. As tecnologias de descarbonização e de eletrificação vão exigir quantidades elevadas de minerais dispendiosos, com destaque para cobre, lítio e algumas terras raras. A IEA considera que haverá procura significativa já em 2030, mas não se mencionam eventuais quebras na oferta, pelo contrário, os países estão a diversificar as cadeias de produção e a abrir novas minas. Reconhece-se, no entanto, que os minerais da transição continuam geograficamente concentrados, problema que levará anos a mitigar.

Ainda dois aspetos importantes, as questões do emprego e do comportamento. Em todo o mundo existem 67 milhões de pessoas a trabalhar nos setores ligados à energia, incluindo mobilidade, eletricidade ou minerais críticos. Este relatório prevê uma criação líquida de emprego durante a transição para energias limpas. A indústria automóvel, por exemplo, terá de encerrar fábricas de veículos a combustão interna, mas isso será compensado pelo fabrico de novos carros elétricos. Os custos sociais parecem limitados e um dos cenários discutidos no texto prevê criação líquida de 17 milhões de empregos.

A velocidade da mudança dependerá do comportamento de milhões de pessoas. Esta é outra das grandes incógnitas no setor da energia, mas a opinião pública promete ser decisiva na aceleração de uma transição que, afinal, não está a correr tão mal como se pensava.

Luís Naves

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